Piedade malsã
Por
Ricardo Henrique Andrade
Professor de Filosofia da UFRB – Amargosa
Email: reseandrade@gmail.com
A ação piedosa não é solidária, nem altruísta, sequer disfarça a prepotência e a crueldade que a motiva. Poucas coisas fazem tão mal a uma sociedade quanto à decisão do Estado em recorrer à piedade sob a forma de política pública. A internação compulsória e sistemática de usuários das cracolândias reaparece em pleno século XXI como ação de governo (em conluio com o judiciário e o legislativo) para “limpar as ruas”: piedade e ódio tornam-se faces de uma mesma moeda malsã. Esta piedade governamental é uma forma dissimulada de indiferença aos assistidos, massacra qualquer suspiro de dignidade e serve apenas para promover socialmente os “piedosos”.
Depois das veementes denúncias de Nietzsche, Arendt, Foucault e tutti quanti como é possível que numa nação moderna – assim supomos ser o Brasil – ainda se admita a internação compulsória (em massa) de usuários de craque? Nossa má-consciência esclarecida (e convenientemente adormecida) será cúmplice desse tenebroso retrocesso? Por que as lições da história não foram suficientemente contundentes a ponto de não mais permitirem um anacronismo dessa magnitude? Será que a modernidade – com valores de justiça e solidariedade – permanecerá uma promessa jamais cumprida em nosso País do futuro? As pessoas – que a imprensa chama de “craqueiros” – não necessitam da misericórdia do Estado, esperam apenas que este cumpra suas obrigações legais, que respeite seus direitos fundamentais, entre eles a liberdade.
As experiências no Rio de Janeiro e em São Paulo com o uso sistemático da força – eufemicamente definida como ação terapêutica sem o consentimento do beneficiado – ressuscitam a maldade positivista da personagem Simão Bacamarte, o médico louco do conto O Alienista de Machado de Assis. Em nome de uma “verdade científica” ele internava como se fossem insanos – com apoio irrestrito do braço armado do Estado – todos os habitantes da cidade que manifestassem quaisquer desvios em relação ao seu rigoroso padrão de normalidade. A ironia machadiana profetiza a Revolta da Vacina e expõem a fragilidade e o cinismo legalista das nossas elites e de suas ideias políticas sempre fora do lugar.
A internação compulsória defendida pelos saneadores dos maus costumes representa um retorno ao utilitarismo higienista de Bentham e não encontra guarida no estado da arte das principais ciências humanas que podem contribuir para uma melhor compreensão do problema. Nem a sociologia, nem a psicologia e nem o direito contemporâneos justificariam este tipo de violação dos direitos humanos. Ela está na contramão da luta antimanicomial no Brasil e de todas as discussões que avançaram na compreensão de como se deve enfrentar o problema das drogas após o evidente fracasso das políticas de intolerância.
As autoridades que defendem o procedimento se mostram conscientes dos riscos dessas operações e dizem agir em consonância com a Lei nº 10.216. Entretanto, basta observar o direcionamento dado por esta política sanitária –que visa escandalosamente atingir a uma população de perfil social específico – para perceber que esta medida ignora o espírito e a letra desta Lei desde seu primeiro artigo: “Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra”. Discriminam, mas maquiam o vocabulário para negarem o fato evidente de que participam de uma experiência fadada ao fracasso ao recorrerem aos mesmos expedientes segregacionistas que malograram num passado sombrio.
Temo que a proximidade da Copa sirva de azo para generalização desta prática no País. Num cenário político no qual predominam os valores de uma direita não-liberal e conservadora e as ações de uma esquerda oportunista e disposta a produzir “resultados” a qualquer preço este absurdo poderá florescer e ratificar o vaticínio de Pero Vaz de Caminha: por aqui “em se plantando, tudo dá”!
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