Quando começou a se interessar pela história da África, o poeta,
diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva ouviu: "Por que você, um
diplomata, um homem tão letrado, não vai estudar a Grécia?"
Justamente porque todo mundo estudava a Grécia, explica, ele resolveu
estudar a África. Hoje, é o principal africanólogo brasileiro, autor de
clássicos como A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses e A Manilha e
o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700. E, aos 84 anos, prepara um
novo livro para completar sua trilogia sobre história africana.
Formado em 1957 pelo Instituto Rio Branco, Costa e Silva serviu em
vários países e foi embaixador na Nigéria.
É membro da Academia Brasileira de Letras, autor e organizador de mais
de 30 livros. Por sua obra, recebeu em 2014 o Prêmio Camões, o mais prestigiado
da língua portuguesa.
Filho do poeta piauiense Antônio Francisco da Costa e Silva, nasceu em
São Paulo e viveu no Ceará até aos 12 anos, quando mudou-se para o Rio de
Janeiro. Cresceu entre livros e costuma dizer que, como no verso do poeta
francês Charles Baudelaire (1821-1867), seu berço "ao pé da biblioteca se
estendia".
Foi entre livros, quadros e esculturas, no apartamento em que guarda
lembranças de vários lugares do Brasil e do mundo, que ele recebeu a BBC Brasil
às vésperas do Dia da Consciência Negra para falar da história do continente
pelo qual se apaixonou.
BBC Brasil: Como o Brasil aprendeu a história da África?
Alberto da Costa e Silva: A história da África durante muito tempo foi uma espécie de capítulo de antropologia e etnografia do continente africano. Eram livros que árabes e europeus escreveram sobre suas viagens. Data do fim da Segunda Guerra Mundial a consolidação a história da África como disciplina à parte, semelhante à história da Idade Média europeia, ou à história da China.
Alberto da Costa e Silva: A história da África durante muito tempo foi uma espécie de capítulo de antropologia e etnografia do continente africano. Eram livros que árabes e europeus escreveram sobre suas viagens. Data do fim da Segunda Guerra Mundial a consolidação a história da África como disciplina à parte, semelhante à história da Idade Média europeia, ou à história da China.
Entre 1945 e 1960 seu estudo começa a ganhar grandes voos, tanto na
África quanto na Europa, sobretudo Inglaterra e França. Curiosamente o Brasil
esteve ausente disso. Os historiadores brasileiros sempre viam a história das
relações Brasil-África com a África figurando como fornecedora de mão de obra
escrava para o Brasil, como se o africano que era trazido à força nascesse num
navio negreiro.
Era como se o negro surgisse no Brasil, como se fosse carente de
história. Nenhum povo é carente de história. E a história da África é uma
história extremamente rica e que teve grande importância na história do Brasil,
da mesma maneira que a história europeia.
De maneira geral, quando se estuda a história do Brasil, o negro
aparece como mão de obra cativa, com certas exceções de grandes figuras,
mulatos ou negros que pontuam a nossa história. O negro não aparece como o que
ele realmente foi, um criador, um povoador do Brasil, um introdutor de técnicas
importantes de produção agrícola e de mineração do ouro.
BBC Brasil: O senhor poderia citar alguns exemplos?
Costa e Silva: Os primeiros fornos de mineração de ferro em Minas
Gerais eram africanos. Fizemos uma história de escravidão que foi
violentíssima, atroz, das mais violentas das Américas, uma grande ignomínia e
motivo de remorso. Começamos agora a ter a noção do que devemos ao escravo como
criador e civilizador do Brasil.
Quando o ouro é descoberto em Minas Gerais, o governador de Minas
escreve uma carta pedindo que mandassem negros da Costa da Mina, na África,
porque "esses negros têm muita sorte, descobrem ouro com facilidade".
Os negros da Costa da Mina não tinham propriamente sorte: eles sabiam, tinham a
tradição milenar de exploração de ouro, tanto do ouro de bateia dos rios quanto
da escavação de minas e corredores subterrâneos. Boa parte da ourivesaria brasileira
tem raízes africanas.
Temos de estudar o continente africano não como um capítulo à parte, um
gueto. A história da África está incorporada à história do mundo, porque ela
foi parte e é parte da história do mundo. Que a história do negro no Brasil não
seja isolada, como se o negro tivesse sido um marginal. O negro foi essencial
na formação do Brasil.
BBC Brasil: Qual a importância de um personagem como Zumbi?
Costa e Silva: Havia um suplemento juvenil do jornal A Noite, sobre
grandes nomes da história, e eu me lembro perfeitamente de um caderno sobre
Zumbi. Zumbi está aliado de tal maneira à ideia de liberdade que é difícil
escrever sobre ele sem ser apaixonado.
Zumbi não é um nome, é um título da etnia ambundo, significa rei,
chefe. Palmares era como um Estado africano recriado no Brasil. Na África era
muito comum isso. Em torno de um núcleo de poder forte se aglomeravam vários
povos e formavam um novo povo. Isso é uma hipótese.
BBC Brasil: O senhor vê um aumento do interesse dos brasileiros pela
questão negra?
Costa e Silva: Tenho a impressão de que todos temos dentro de cada um
de nós um africano. Podemos não ter consciência disso, mas é permanente. Há
naturalmente hoje em dia uma percepção mais nítida do que é a África, a escola
começa a dar uma visão mais clara.
Mas ainda apresenta visões distorcidas. Uma vez uma professora veio me
dizer que era absurdo que apresentássemos Cleópatra como uma moça branca,
quando ela era negra. É um equívoco isso. Cleópatra não era negra nem mulata.
Era grega. Os Ptolomeus, uma dinastia grega, governavam o Egito e não se
misturavam.
BBC Brasil: Na África também havia escravos, não?
Costa e Silva: Escravidão houve em todas as culturas no mundo. Todos
nós somos descendentes de escravos. Houve escravidão em toda a Europa, na
Indonésia, entre os índios americanos, na Inglaterra. Na África havia todos os
tipos de escravidão, e até hoje em certas regiões africanas os descendentes de
escravos são discriminados. Quase toda a África teve escravidão.
A escravidão transatlântica, da África para as Américas, a nossa, tem
uma diferença básica: pela primeira vez era uma escravidão racial. Era um especial
aspecto da perversidade dela. No início não, mas a partir de certo momento,
passa a ser exclusivamente negra. Foi o maior deslocamento forçado de gente de
uma área para outra que a história já conheceu, e o mais feroz.
O Brasil foi o último país das Américas e do Ocidente a abolir a
escravidão. O último do mundo foi a Mauritânia (na África), em 1981.
BBC Brasil: Como analisa o racismo hoje no Brasil?
Costa e Silva: Existe racismo, e muitíssimo. No nosso racismo, não
temos um partido racista, mas temos repetidas manifestações de racismo no seio
da sociedade. É dificílimo, para um negro, ascender socialmente. A
discriminação se exerce de forma muitas vezes dissimulada, mas que os marca
muito. Mas está mudando. Sinto mudanças.
É importante que os descendentes de africanos saibam que eles têm uma
história tão bonita quanto a história da Grécia. Que eles não eram bárbaros,
que não são descendentes de escravos. São descendentes de africanos que foram
escravizados.
Para mim o importante não é que haja cota na universidade. Acho que tem
de haver cota em tudo. Se você vai se candidatar a um cargo de atendente de
hotel de primeira classe, se você for negro, você tem dificuldade. O
preconceito é discriminatório. Ele não impede você de usar o mesmo banheiro, o
mesmo bebedouro, mas dificulta o acesso (do negro) às camadas das classes média
e alta.
(Fonte: G1)
0 comments: