terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

PANDEMIA E SANTIFICAÇÃO DA CIÊNCIA (TOSTA NETO)

Em tempos pandêmicos, a exaltação da ciência virou uma modinha de rede social. A priori, para que o autor deste singelo artigo não seja execrado ou cancelado pelo Tribunal das Redes Sociais, ele reconhece a importância da ciência no progresso da humanidade e no bem-estar social. Inegavelmente, a ciência moldou o século XX e elevou de forma significativa a expectativa de vida, porém os benefícios supracitados não devem alçá-la ao status de santidade, haja vista o uso de uma mentalidade científica no extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas e o lançamento das bombas atômicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Reconhecemos o quão a ciência é imprescindível, todavia não a posicionaremos num panteão sacro.

Desde a Idade Antiga, perpassando pela Baixa Idade Média e Renascimento até desembocar na Revolução Científica do Século XVII, o conhecimento científico se mostrou útil na resolução de problemas do cotidiano. A consolidação do método científico viabilizada pelos estudos de Galileu Galilei, Isaac Newton e René Descartes e a proeminência da razão no Iluminismo, estabeleceram as bases para uma maior projeção da ciência no século XIX. Neste período, o mundo vivia a 2ª fase da Revolução Industrial, cujas muitas descobertas científicas foram aplicadas no mundo das fábricas, vide a eletricidade e a química farmacêutica. Inferimos que o século XIX testemunhara a afirmação da ciência. Não esqueçamos que os positivistas colocaram o conhecimento científico no topo da hierarquia epistemológica. O advento da pandemia do Coronavírus nos permite concluir que estamos a presenciar um neopositivismo? É claro que não! Depois regressaremos a tal indagação.

Na ciência, nada acontece da noite para o dia. O conhecimento científico, como qualquer tipo de conhecimento, requer muitíssimo tempo para ser aprimorado e efetivado. Insofismavelmente, o tempo é primordial no método científico, o qual, passará por uma série de testes. Por ora, é deveras oportuno traçar um paralelo com a filosofia da ciência de Karl Popper. Consoante o pensamento do filósofo austríaco, a ciência se submete ao crivo da falsificabilidade. Tal conceito propõe que uma teoria científica deve ser falsificada, isto é, propensa a inúmeros testes até o conhecimento ser corroborado. Por conseguinte, a teoria científica é ousada e conjectural, indo além dos dados empíricos disponíveis, desde que seja refutável. Em Popper, refutar (testar) a ciência não é um sacrilégio, muito pelo contrário, é essencial no desenvolvimento da ciência.

Inestimável Leitor, continuemos na área da filosofia da ciência. O Covid-19 trouxe uma conjuntura sui generis no século XXI. A humanidade e os cientistas se reinventaram para enfrentar os efeitos da pandemia, suscitando novos comportamentos e novas normas à sociedade e à comunidade científica. Notoriamente, estamos a contemplar um período revolucionário na história que trará uma mudança de paradigma (conjunto de regras) na ciência, cujo tempo para a produção de vacinas será menor. Num tempo científico relativamente curto, alguns laboratórios engendraram imunizantes para inibir a propagação do vírus. Neste ínterim, faremos um diálogo com a filosofia da ciência de Thomas Kuhn, a qual, salienta que um novo paradigma é estabelecido somente em épocas de ciência revolucionária, emergindo em resposta ao acúmulo de anomalias e dificuldades que não podem ser combatidas pelo paradigma vigente. Kuhn atesta que, nas fases conturbadas da história, os paradigmas passam por mudanças. O fato é que a ciência não será mais a mesma, sobretudo aquela ligada à imunologia e à epidemiologia.

Tendo como horizonte Popper e Kuhn, a ciência deve ser testada de forma ininterrupta, além de trazer consigo a semente da mudança, fatores que não a tornam infalível. Todavia, nestes tempos pandêmicos, a ciência se depara com uma aparente santificação. É de causar estranheza que de uma hora para outra, muitas pessoas, principalmente os militantes de Instagram, comportaram-se como defensoras fervorosas da ciência. Há pouco tempo, a ciência não estava no rol das postagens de tais internautas. Eis a máxima: é preciso construir uma imagem positiva e heroica nas redes sociais. Por sinal, tenho a impressão que alguns destes internautas jamais tiveram a curiosidade de navegar por um site científico ou ler um texto de filosofia da ciência.

Enfim, as conversas de botequim e os debates intermináveis nas redes sociais espelham com frequência o osmótico aforismo: “é a ciência”. Perguntemos: qual ciência? A indutiva? A dedutiva? A de Oxford? A de Harvard? Silêncio! Império da ausência de respostas. É fundamental ter sapiência e não se autoproclamar o baluarte-mor da ciência. Deixemos a ciência com os cientistas. A ciência não precisa de porta-vozes, defensores e detratores. Um erro crasso da contemporaneidade foi partidarizar o debate público acerca do enfrentamento à pandemia. O senso comum não está habilitado para discutir temáticas de cunho científico. A propósito, o filósofo francês contemporâneo, Gaston Bachelard, delimitou uma longuíssima distância entre o conhecimento científico e o senso comum. Exaltemos o progresso da humanidade atrelado aos avanços da ciência, em contrapartida, não devemos santificá-la, assentando-a no altar. Oxalá que as questões sacras e divinas continuem a ser uma exclusividade do mundo das religiões.

(Tosta Neto, 02/02/2021)

 

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