domingo, 10 de janeiro de 2016

A Alemanha prepara nova edição de "Minha luta", livro banido de Hitler

Em 30 de abril de 1945, o Exército americano tomou Munique do controle nazista. Ao sitiar a cidade, as tropas aliadas também se apoderaram da editora Franz Eher Nachfolger GmbH, responsável pelas publicações do Terceiro Reich. Com o fim da ocupação, os direitos autorais da antiga editora se tornaram propriedade do Estado da Baviera. A maior – e mais infame – peça do acervo é, sem dúvida, o livro Mein Kampf (Minha luta, em português), manifesto nazista escrito por Adolf Hitler entre 1924 e 1925, aos 35 anos. Durante os 70 anos que se seguiram após a Segunda Guerra Mundial, a Baviera controlou firmemente a publicação do manifesto nazista, símbolo do pensamento racista e beligerante que levou o mundo a seis anos de combates sangrentos e a 50 milhões de mortes. Desde então, nenhuma nova edição teve o aval para impressão. Segundo o Direito alemão, porém, 70 anos é o limite de validade dos direitos sobre uma obra após a morte do autor. Hitler morreu em 1945, e Mein Kampf entrará em domínio público a partir de 1º de janeiro do ano que vem. Qualquer um terá, então, direito a publicá-lo. Já é possível encontrar o texto na internet, em leilões de edições raras ou em sebos. O maior receio dos alemães é quanto a possíveis usos comerciais e, principalmente, políticos do texto. Não é para menos. A obra termina, afinal, com um apelo fanático e racista: “O Estado que recusa a contaminação racial vai inevitavelmente dominar a Terra”. Setenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha redescobre que o passado não é passado – e se vê mais uma vez diante do dilema sobre como lidar com Hitler.
A escolha alemã não é simples. Envolve a tensão entre dois princípios basilares da Civilização Ocidental: a liberdade e a dignidade. O que deve prevalecer: a liberdade de circulação de um livro, por mais maldito que seja? Ou a dignidade das vítimas das atrocidades patrocinadas pela ideologia contida na obra? Setenta anos depois, estará a Alemanha pronta para esse debate? O Instituto de História Contemporânea de Munique trabalha há três anos para responder a esse dilema. Para os diretores do instituto, a Alemanha precisa enfrentar o texto de Hitler. Fundado no final dos anos 1940 para estudar os fenômenos do nazismo, o instituto é considerado um dos principais centros de estudos sobre o tema no mundo. Uma equipe de cinco historiadores finaliza uma edição comentada do livro. Ela explicará o contexto em que Hitler escreveu a obra – e como ele se tornou o ditador responsável pelo extermínio de milhões de judeus, negros, ciganos e homossexuais, além de opositores ligados a partidos de esquerda. Os comentários históricos transformarão a obra, originalmente de 780 páginas, em um colosso de 2 mil páginas. Além de contextualizar o Mein Kampf, a equipe de pesquisadores vai apontar omissões, mentiras e contradições no discurso de Hitler – um mosaico de meias verdades e mentiras completas, até hoje bastante comum em narrativas da extrema-direita europeia. Por exemplo, a nova edição ressaltará que, apesar de criticar em Mein Kampf o tratamento dispensado aos veteranos da Primeira Guerra Mundial que sofriam de sequelas causadas pelos combates, Hitler, uma vez no poder, ordenou a eutanásia de 5 mil veteranos. “Uma leitura crítica ajudará a evitar que futuros leitores acreditem naquela narrativa absurda. Acreditamos que seja a melhor maneira de prevenir que tais argumentos sejam novamente evocados”, diz um dos diretores do instituto, o historiador Magnus Brechtken.
O projeto reabriu na Alemanha feridas que, na verdade, nunca cicatrizaram. Organizações de vítimas do Holocausto se manifestaram contra a publicação do livro, mesmo que numa edição crítica. O presidente do Fórum Judeu pela Democracia, Levi Salomon, declarou: “Sou peremptoriamente contra a publicação de Mein Kampf, sob qualquer circunstância. Como se pode contextualizar o diabo?”. Outras organizações judaicas, ligadas à pesquisa histórica, entretanto, apoiam o projeto. Até mesmo o Estado da Baviera entrou na polêmica. Inicialmente engajado na execução da edição comentada, o governo regional doou meio milhão de euros para o trabalho editorial. Mas, em função dos ataques de grupos judaicos, a Baviera se desvinculou completamente do trabalho em dezembro de 2013. Ou quase. Os contribuintes alemães continuam pagando pela nova edição, uma vez que o instituto é bancado com verbas públicas, e o dinheiro que já havia sido investido não precisou ser devolvido aos cofres públicos. Para Edouard Husson, professor de história contemporânea da Universidade Jules Verne e especialista em nazismo, a iniciativa é de fundamental importância. “Infelizmente, é um livro muito claro em seus propósitos. Seu status clandestino lhe deu ainda mais notoriedade atualmente. Essa primeira edição crítica certamente ajuda a desmitificar esse texto, cujos argumentos ainda são repetidos por extremistas antissemitas, tanto de direita quanto de esquerda”, pondera.
Mein Kampf foi escrito quando Hitler estava preso por organizar um golpe de Estado atabalhoado e malsucedido. Ele ditou o conteúdo, composto de suas memórias e do plano para que a raça ariana cumprisse seu destino, a Rudolf Hess (que se tornaria o chefe da chancelaria do Partido Nazista). O texto foi datilografado em uma máquina emprestada pelo então presidente do Deutsche Bank, o maior banco alemão daquele momento, em papel doado por Winifred Wagner, nora do compositor Richard Wagner e amiga íntima de Hitler. Em 780 páginas, Hitler enfileira diatribes sobre a culpa dos judeus na derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial. Defende que a Alemanha errou ao não executar, usando gases venenosos, cerca de 10 mil judeus que seriam “corruptores do povo” e cuja morte teria poupado o sacrifício de milhões de soldados alemães. Também é uma obra sobre o rancor diante das humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes. Ao se render, a Alemanha foi obrigada a assumir integralmente a culpa pela guerra, perdeu boa parte de seus territórios – como porções da Prússia Oriental, para a formação do Estado da Polônia, e a Alsácia e Lorena, territórios que haviam sido conquistados da França na Guerra Franco-Prussiana. Teve ainda de pagar duríssimas indenizações, conviver com a ocupação de parte do país e a desmilitarização total dos territórios à esquerda do Rio Reno. O livro também antecipa o expansionismo nazista, trazendo a ideia do “espaço vital” germânico, do Atlântico à Rússia. Em suma, Hitler defendia entrar em guerra com a França, com a Rússia e eliminar raças consideradas “inferiores”. O que ele colocaria em prática a partir de 1933, ao chegar ao poder.
De chofre, ninguém deu muita bola ao livro. Em 1925, ano da primeira impressão, menos de 10 mil cópias foram vendidas. Um número respeitável para aquele momento – e só. O segundo tomo da obra, dedicado aos ideais nazistas, foi publicado em 1927. As vendas, no entanto, continuaram medíocres. Era um livro ruim de ideias e de estilo. “O livro é um horror, de todas as formas. O conteúdo é monstruoso, e o estilo literário é pobre”, analisa o historiador Bernard Quirin, docente da Universidade de Caen. Mein Kampf foi considerado por muitos críticos como uma obra demente de um radical político até então sem muita importância. No nicho da extrema-direita, porém, o livro confiou a Hitler uma aura de teórico. Deu algum pedigree ao austríaco de pouco estudo e passado desconhecido.
Foi apenas a partir de 1933, quando Hitler se tornou chanceler alemão, ainda sem maioria no Parlamento, que o Mein Kampf se transformou num fenômeno editorial. Ao final do primeiro ano dos nazistas no poder, 1 milhão de cópias haviam sido vendidas. Com o aumento da popularidade do chanceler, virou uma obra quase obrigatória na biblioteca das casas alemãs. Num regime que avançava no fanatismo totalitário, tendo Hitler como patrono da nova nação ariana, pegava mal não ter Mein Kampf na estante. “Não quer dizer que as pessoas necessariamente o liam. Ele era, antes de tudo, um objeto de culto à imagem do líder. É incrível que um livro tão mal escrito e tão pouco lido tenha mudado a história de uma forma tão profunda”, comenta Quirin. Até 1945, mais de 10 milhões de cópias seriam impressas. Na celebração de qualquer casamento na Alemanha nazista, um exemplar era oferecido pelo Estado ao casal. A estratégia não apenas ajudou a consolidar o fervor em torno da imagem do criador do nazismo, como, graças ao pagamento de direitos autorais, fez do Führer um multimilionário.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as impressões oficiais foram proibidas. Há, no entanto, iniciativas oficiosas em torno do manifesto nazista. No Japão, uma edição em mangá foi publicada em 2009, e registrou em torno de 45 mil exemplares vendidos. Na Alemanha, o governo chegou a um acordo com bibliotecas digitais, como a da Amazon, para impedir a venda de exemplares digitalizados. Em leilões de antiguidades, algumas das primeiras edições são vendidas a preços exorbitantes. Um exemplar de 1926, com dedicatória de Hitler a um membro do partido, foi vendido em 2014 por US$ 64 mil. Em vários países, entretanto, Mein Kampf é uma obra banida. A Holanda pune penalmente sua venda, e a Rússia baniu a obra em 2010.
O possível retorno da bíblia nazista às prateleiras de livrarias e bibliotecas incomoda porque toca na tensão liberdade e dignidade, que nenhum Estado moderno conseguiu conciliar satisfatoriamente. Deve haver controle sobre o que se fala ou publica? Controlar um discurso de ódio não abre precedente para a censura total do Estado?
O historiador Claude Quétel argumenta que a liberdade deve ser mantida, mas reconhece os possíveis efeitos colaterais, principalmente no caso do Mein Kampf. “Esse livro foi erroneamente subestimado. Ele tem uma narrativa cíclica que, se não é boa sob a ótica literária, é pelo menos muito clara. Ele preparou os alemães para um estado de guerra, anestesiou o inconsciente coletivo do país normalizando o ódio aos judeus”, diz Quétel. Para Kendall Thomas, professor de filosofia legal pela Universidade Columbia, a dignidade deve prevalecer. “Permitir todo e qualquer tipo de discurso de ódio sob o argumento de defender a liberdade ignora o princípio da igualdade entre cidadãos. É preciso entender que a regulação a demonstrações de ódio não vai de encontro aos princípios democráticos”, reflete. Thomas alerta que não se pode conciliar liberdade total e igualdade total. O desafio do Estado é justamente encontrar o equilíbrio. Afinal, valores fundamentais são protegidos por meio do combate ao discurso de ódio. “O principal deles é o da dignidade”, afirma Thomas, “individual e pública. Uma pessoa deve ter o direito de usufruir o espaço público sem ser cercada por textos ou manifestações que firam sua honra.” O dilema alemão continua em aberto.

(Fonte: Época)

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